TAWAPAYÊRA – Dealmeida Esilva, Igor Jesus, Tiago Alexandre e Júlio Pomar – Curadoria Alexandre Melo – Atelier-Museu Júlio Pomar 28.10.2017 – 04.02.2018
“A exposição Tawapayera, com curadoria de Alexandre Melo, com obras de Júlio Pomar, Dealmeida Esilva, Igor Jesus e Tiago Alexandre, está integrada na programação da Passado e Presente – Lisboa, Capital Ibero-Americana de Cultura 2017, no Atelier-Museu Júlio Pomar, e dá seguimento ao programa de exposições do Atelier-Museu que procura cruzar a obra de Júlio Pomar com a de outros artistas, de modo a estabelecer novas relações entre a obra do pintor e a contemporaneidade.” (AMJP)
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OS ÍNDIOS de Júlio Pomar, Amazónia, 1988/89 e 1997
“Em 1988, Pomar passou perto de dois meses no Alto Xingú, um território em Mato Grosso, na bacia do Amazonas, habitado pelos Txicão, os Kamaiuras, os Iawalapitis e outras tribos indígenas, num acampamento montado para a rodagem do filme de Ruy Guerra baseado no romance ‘Quarup’, de António Calado, a convite do produtor Roberto Fonseca. As pinturas que realizou constituíram o último grande ciclo que teve por origem um “espectáculo” a que o artista assistiu ao vivo, transferindo-o e reinterpretando-o do visto para o quadro, e aconteceu – excepto algumas pequenas tábuas de produção local – depois do seu regresso a Lisboa e a Paris. Deu origem a duas exposições diferentes que decorreram em 1990 em Madrid, na feira Arco, apresentada pela Galeria 111, e em Paris, na Galeria George Lavrov: ‘Os Índios’ e ‘Les Indiens’. As pinturas foram precedidas e sustentadas por um extenso corpo de desenhos de observação que também foi parcialmente exposto e que deu origem, muito mais tarde, a um pequeno álbum editado pela Fundação Júlio Pomar em 2017:
Segundo sublinha Hellmut Wohl no catálogo da sua exposição antológica ‘A comédia Humana’ (CCB, 2004), citando o artista, “durante este tempo que passou entre os índios, Pomar fez desenhos, mas não tocou nos pincéis: ‘Ver, ouvir, tocar, sentir, era apenas esse o meu programa. O que faria ou não faria, relativamente à pintura, isso viria depois… Enquanto lá estive, renunciei à pintura’ ” (in Alain Gheerbrant, Peinture et Amazonie, Ed. Différence, Paris, 1997, p. 22) De facto, os desenhos feitos no Xingu, sendo desenhos de observação, são já, em muitos casos, estudos para pinturas, apontando desde logo as figuras, os motivos e as situações que surgem depois nas telas do atelier. Noutro local Pomar referiu que era quase impossível desenhar frente aos Índios, porque as crianças o cercavam, observando-o e pedindo cadernos e lápis. Os desenhos foram quase sempre executados ao final do dia, de regresso à tenda, e mais do que apontamentos “do natural” (“sur le vif” – diante do motivo) são estudos repetidamente retomados que se tornam desenhos preparatórios, com a excepção de alguns muito pequenos blocos e figurações mais rápidas.
A observação de cariz etnográficoo, identificando grupos, personagens e rituais, referidos nos títulos, ilustram e distinguem presenças físicas, pinturas corporais, lugares (a floresta, o terreiro, a maloca), plumagens e instrumentos (as flautas, os arcos, etc). Não é propriamente um programa documental mas a série constitui um retrato raro da Amazónia, em pintura e desenho, mesmo no Brasil. “Algumas palavras acerca dos títulos das pinturas que Pomar fez depois de regressar: Pajé Tocando Jakui [catálogo AMJP, p. 135, versão em serigrafia] representa um xamã (pajé) a tocar uma flauta (jakui) que nunca deve ser vista pelas mulheres; Kuarup II refere-se à celebração dos mortos; Jakui II [cat. p. 121] representa o tocar das flautas cerimoniais; Os Txicão [cat. p. 149] são uma das tribos indígenas do Xingu.” (Hellmut Wohl, loc. cit.)

O tema dos índios iria regressar com novas pinturas em 1997, desencadeadas pelo projecto de uma exposição da série em Biarritz (Festival Cinemas e Culturas da América Latina). Surgem aí as grandes telas dos “Banhos das Crianças no rio Tuatuari”, um assunto ausente da primeira série mas que estava presente em alguns desenhos esquecidos pelo pintor. A referência a Cézanne foi reconhecida por Pomar e é apontada por Hellmut Wohl: “É impossível não se pensar nestes três quadros de Pomar como uma resposta às Grandes Baigneuses de Cézanne, de 1899-1906, que está no Philadelphia Museum of Art. Manuel Castro Caldas [ao escrever sobre os Mascarados de Pirenópolis] fez notar que as obras tardias de Cézanne foram uma das fontes de inspiração da última maneira [do estilo tardio] de Pomar, para a construção da forma e do espaço através da cor. La Baignade II [cat. AMJP p. 104-105], pela cor escura das figuras e o aplanamento das formas dos banhistas em primeiro plano, sugere também a influência de Gauguin.”

As telas de 1997 (La Baignade des enfants dans le Tuatuari I e II e La grande baignade) foram também expostas nesse ano em Paris numa mostra na Galerie Gerald Piltzer que se intitulou “Les Joies de Vivre”, acompanhada por um álbum com textos de Marcelin Pleynet e António Lobo Antunes. Não é irrelevante o título escolhido e que a passagem aos muito grandes formatos, dois trípticos e um políptico no caso dos Índios, tenha ocorrido por altura de uma operação e da quimioterapia…
Outros Índios, esses pintados a pastel, apareceram ainda numa individual em 2002 na Galeria 111 (“Os três Efes, 1996-2002 – fábulas, farsas e fintas”).
Na exposição do Atelier-Museu mostraram-se apenas as quatro pinturas acima referidas e numerosos desenhos, optando-se pela inclusão de obras de três jovens artistas.
Os Índios tinham-se sucedido a uma outra série brasileira que resultou da visita, em 1987, a Pirenópolis, no Estado de Goiás, para assistir às festas do Divino Espírito Santo, cujas Cavalhadas vieram a ser o tema da série de quadros ‘Mascarados de Pirenópolis’ (expostos na Arco e em Lisboa pela 111, catálogos com texto de Manuel Castro Caldas). Tratara-se igualmente de um convite de amigos brasileiros, por ocasião da instalação de uma decoração mural em azulejo com motivos circenses e festivos realizada para o Grã Circo-Lar de Brasília, na Esplanada dos Ministérios, ao tempo do governador José Aparecido de Oliveira (os painéis foram muito mais tarde, em 2009, refeitos e reinstalados no exterior da Biblioteca Nacional na Praça da Língua Portuguesa, com 130 metros quadrados de azulejos e 26 figuras desenhadas a azul sobre fundo branco).
Revendo a cronologia deste tempo de obras e viagens brasileiras acrescente-se que ele se iniciara em 1986 com a circulação de uma mostra antológica organizada pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian (Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro, e já em 1987 Lisboa). Em 1988 os desenho para o Grã Circo Lar foram mostrados em galerias brasilerias, com a edição do livro “Os desenhos do Circo de Brasília”, com um texto de Paulo Herkenhoff, edição Gal. 111. A seguir, em 1990, a exposição ‘Pomar / Brasil’ reuniu essas três séries de trabalhos e foi levada ao Rio de Janeiro e São Paulo e mostrada também em Lisboa.
Pode assinalar-se ainda que os Mascarados brasileiros tiveram uma sequela na série “Festas do Divino Espírito Santo, na Ilha Terceira”, realizada em 1991-93 e exposta em 1994 na Culturgest – CGD (“O Paraíso e outras histórias”) e em 1996 no Instituto Açoriano de Cultura, Angra do Heroismo.
A seguir ao ciclo dos Tigres (1979-1982) a obra de Pomar orientara-se para os temas literários – e depois mitológicos – que constituiriam o centro do seu trabalho nas décadas seguintes, em especial a a partir do ciclo de desenhos para o Metropolitano de Lisboa dedicados a Camões, Bocage, Pessoa e Almada, que se prolongou na série sobre ‘The Raven’ / ‘O Corvo’ de Edgar Allen Poe e os seus tradutores, Baudelaire, Mallarmé e Pessoa (Le Livre des Quatre Corbeaux, Ed. Différence), depois as variações sobre Adão e Eva, Ulisses, Hércules, etc.
Mascarados e Índios descentraram o artista, naqueles anos 1987-90, e depois 1997, dos temas da literatura e da imaginação (que incluía também os retratos de escritores) para a observação e a recriação do espectáculo visual directamente visto, o mundo visível e real, que constituíra quase desde o início a base, o assento, do seu ‘realismo’, da sua figuração gestual e/ou da sua particular des-figuração, quando na passagem dos anos 1950 aos 60 se desligou da alegoria neo-realista. Citem-se as cenas de trabalho, as tauromaquia, os metros e as corridas de cavalos, o catch, e o rugby já por via da apropriação de fotografias, com que Pomar de certo modo se reencontrou ao tempo do seu “estilo tardio”. (A.P.)