
“Edição & Utopia — Obra gráfica de Júlio Pomar” – Curadoria de Sara Antónia Matos – Atelier-Museu Júlio Pomar – 24.10.2014 / 08.03.2015

“O que leva um artista a fazer edições e tiragens de múltiplos de uma mesma imagem? A exposição “Edição e Utopia – Obra gráfica de Júlio Pomar” procura levantar um conjunto de questões relacionadas com as práticas da gravura, da serigrafia e, lato senso, das formas de reprodução de imagens. O que motiva, em diferentes momentos, o recurso a técnicas que permitem uma multiplicação de imagens? Com que fim?


As práticas da gravação, as edições mais ou menos especiais, as tiragens mais ou menos limitadas, transportam uma espécie de contradição: a difusão e circulação alargada da imagem da obra de arte, cuja natureza singular e irrepetível a torna restrita a um universo especializado – paradoxo que em si mesmo releva uma utopia.
Dividida em diferentes núcleos, a exposição dá a conhecer a produção em gravura de Júlio Pomar na década de 50, os desenhos / ilustrações que o artista fez para “Guerra e Paz”, de Tolstoi, e para “O Romance de Camilo”, de Aquilino Ribeiro, algumas caixas com serigrafias onde é dada especial atenção às tiragens limitadas, numeradas e assinadas pelo artista, e ainda reproduções em serigrafia, onde se encontram as séries dos «nus recortados», técnica em que o pintor parece aproximar-se mais explicitamente das metodologias gráficas.


Em cada núcleo da exposição, além de se mostrarem as formas multiplicadas ou replicadas, apresentam-se ao público pinturas, desenhos, estudos, provas, chapas e outros suportes que permitem entender a contaminação entre os meios plásticos, o pensamento do pintor, e dar conta do circuito complexo envolvido no processo criativo de Júlio Pomar.” (AMJP)


Papagaio e Macaco (Grande Fabulário de Portugal e Brasil, ed. Folio), 1962
Click to access Edicao_e_Utopia-Obra_grafica_de_Julio_Pomar.pdf
*
Sobre estampas, original e múltiplo
Uma gravura e uma fotografia, impressas a partir de uma matriz ou de um negativo ou ficheiro digital, são originais (e podem ser ou não ser múltiplos, se forem ou não forem multiplicados – mas o seu destino esperado é, de facto a multiplicação): são considerados originais a gravura/estampa, no caso da edição limitada, numerada e assinada pelo autor, que em princípio imprimiu ou acompanhou a tiragem ou aprovou uma impressão certa a multiplicar (o “bom à tirer”); e também a fotografia no caso das provas vintage e de trabalho, e das provas de autor cuja impressão ele autorizou e assinou (ou não assinou).
Com a gravura e a fotografia não há – ou há raramente – lugar para o fetichismo do exemplar único, e o número de provas é uma convenção tardiamente regulamentada que importa apenas ao mercado (e ao coleccionador) – para além da eventual questão do desgaste material da matriz no caso da gravura).
A pintura e o desenho multiplicavam-se (e multiplicam-se) através da cópia manual – que foi durante muito tempo socialmente aceite pelos coleccionadores, as cortes e academias, e pode ser ainda hoje uma forma de aprendizagem (o falso é outra coisa, uma variedade não autorizada da cópia).
A gravura de reprodução foi depois, ao longo de séculos e até ao século XIX, a grande fórmula de circulação de informação visual sobre as obras de arte (pintura, desenhos e gravuras) antes da invenção da reprodução fotográfica, a preto e branco, depois a cores. A gravura de autor é outra coisa e tem a sua história própria – aliás, as suas histórias próprias para cada uma das grandes espécies de gravação (em pedra litográfica, em madeira e metal) e de impressão-tiragem (em geral em papel).
A gravura e a fotografia são processos de criação em que a possibilidade de multiplicar faz parte da sua especificidade técnica e processual e da sua originalidade, da sua condição ou natureza, se se quiser. A gravura e a fotografia são formas de criação de imagens originais, antes de serem formas de multiplicação ou reprodução de imagens. O processo técnico da gravura, com os instrumentos de gravação, os seus suportes materiais e as suas matérias aplicadas no suporte (ácidos, gomas, açucares, etc) determinam a diferença e a qualidade própria do objecto final impresso, diferente da criação com a grafite ou o pastel sobre papel ou do óleo sobre tela. Antes de ser multiplicável a gravura é uma tecnologia separada de criação de imagens. Esta exposição que propõe associar edição e utopia pode ser uma oportunidade para enfrentar algumas questões.
#
“Havia a ilusão nos anos 60, quando se começa a multiplicar, de que haveria uma democratização da arte, o que não é verdade” (citação, DN).
Vamos lá ver: democratização da arte havia mesmo (questão de multiplicação de originais – mas neste caso cada múltiplo é um original: “milagre” da gravura e da fotografia; e/ou questão de distribuição e acessibilidade, isto é, de preço).
A “ilusão” – que se perdeu logo na década de 50, ao tempo da criação da Cooperativa Gravura, em 1956 -, a ilusão neo-realista militante, era contar com que a democratização da arte fosse um caminho para democratizar o país; contar com que a arte para o povo fosse politicamente eficaz, num processo directo de causa a efeito, em que era essencial partir de imagens figurativas compreensíveis para a generalidade dos espectadores.
Mas multiplicar (produzindo estampas e fotografias, tal como editando livros, discos e cópias de filmes – e são multiplicações de diferente natureza: consulte-se o Gérard Genette sobre os regimes de imanência e de transcendência da obra de arte: o regime autográfico e o regime alográfico, a partir de Nelson Goodman – ver L’OEUVRE DE L’ART, Seuil, 1994-1997, 2 vol.) é de facto um acto de democratização.
Walter Benjamin é responsável por persistentes equívocos com a sua ideia da reprodutibilidade técnica e da correlativa perda da aura. “Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, a sua existência única, no lugar em que ela se encontra.” (…) “O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. Esse processo é sintomático, e sua significação vai muito além da esfera da arte.”
No espaço entre a obra única (pintura, desenho) e o que decorre da reprodutibilidade técnica (a impressão tipográfica) existem os objectos (as criações artísticas) que são pelas suas condições materiais de produção ao mesmo tempo originais e múltiplos (não são reproduções): a escultura fundida em bronze é um caso exemplar, as estampas/obra gráfica estão na mesma situação, e as provas fotográficas de autor igualmente. (O linóleo, a litografia e a serigrafia não são gravuras mas são estampas/obras gráficas). A reprodução escolar do Benjamin tem tido efeitos muito perniciosos.
Alexandre Pomar