“O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68” – obras de Júlio Pomar e de Ana Vidigal, Carla Filipe, João Louro, Jorge Queiroz, Ramiro Guerreiro e Tomás da Cunha Ferreira / Curadoria de Nuno Crespo e Hugo Dinis / Atelier-Museu Júlio Pomar 15.05.2018 – 29.09.2018
“Maio 68” é o nome de uma série de pinturas de Júlio Pomar iniciada ao tempo dos acontecimentos de Paris, que conta com sete telas conhecidas – a última é já de 1969, a pedido de Manuel Vinhas, e pelo menos outras cinco tinham sido imediatamente adquiridas por Jorge de Brito. Não foram expostas até aos anos 1980.
A série “Maio 68” sucede às pinturas dedicados ao Rugby, que iniciaram em 1967 o que se pode caracterizar como o “período Pop” de Júlio Pomar. E foi seguida pelas obras dedicadas a – ou realizadas a partir de quadros de – Ingres, Courbet, Van Eyck e Chardin, que se prolongaram pelo período dos retratos, até 1975. O uso dos planos de cor lisa, as formas recortadas sem pincelada visível e num espaço não perspéctico, as cores primárias da tinta acrílica caracterizam todo este período. O pintor partia então da utilização de fotografias encontradas (Rugby e Maio) e a seguir da interpretação de obras de outros pintores. Ao contrário das séries que tiveram como referência a tauromaquia, as corridas de cavalos e o catch, Júlio Pomar nunca assistiu a um jogo de rugby, pelo que o uso da fotografia deixa de ser um auxiliar da memória para ser a origem directa da imagem, como sucede na prática dos artistas Pop.

Os acontecimentos e imagens de Maio de 1968 estão praticamente ausentes da pintura do tempo, que em França era o da nova figuração e da figuração narrativa. O contexto político ficou em grande parte associado a recusas da pintura em favor da ideia de arte pública, do cartaz, dos objectos e das acções, com maior ou menor teor político. Mas desde a instalação em Paris em 1963 Pomar interessava-se pela Pop inglesa e norte-americana, como viria mais tarde a dizer. Pinturas de actualidade e de história, os “Maios” retomam a razão política dos anos 40-50, continuam algumas variações sobre as “Batalhas” de Uccello (1964), ao mesmo tempo que conduzem a uma diferente figuração onde o agenciamento das formas recortadas parece associar-se às experiências das assemblagens de materiais encontrados de 1967. Mais do que nos Rugbys é nas sete telas de Maio 68 que se assiste a uma rápida transição entre diferentes “estilos” ou fases.

Não será indiferente que os Beatles tenham surgido em quadros de 1965, que a presente exposição acertadamente incluiu como testemunho do “ar do tempo”. Eles continuavam a figuração gestual das séries de então, mas ilustram o interesse pela cultura Pop ou popular anglo-americana… (A.P.)
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“O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68”
“ A exposição “O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68”, com curadoria de Nuno Crespo e Hugo Dinis, com obras de Júlio Pomar, Ana Vidigal, Carla Filipe, João Louro, Jorge Queiroz, Ramiro Guerreiro e Tomás da Cunha Ferreira, recorda e comemora o 50º aniversário do movimento estudantil francês. Esta dinâmica revolucionária alastrou-se a vários sectores da sociedade, revelando-se um momento fundamental para a definição da vida contemporânea, não tanto em termos das alterações legislativas e políticas produzidas no imediato, mas sobretudo pelo modo como se foi questionando uma velha ordem social hierárquica estabelecida, classicista e autoritária. O Maio de 68 tornou-se no símbolo de uma nova ordem social, que não dizia respeito só às relações académicas, mas a todas as instituições sociais, políticas, económicas e culturais.
A expressão artística deste movimento estudantil é um dos seus aspectos mais produtivos, tanto no cinema, como na literatura e nas artes visuais. Júlio Pomar, a viver em Paris nessa altura, e desde 1963, não ficou indiferente e, contaminado pelo espírito de 1968, fez um grupo importante de pinturas onde retoma uma certa ideia da articulação arte-política que lhe era tão próxima nos anos de 1940.
Assim, “O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68” além de mostrar o modo como Pomar testemunha directamente os movimentos estudantis, procura reflectir sobre como na obra deste artista há, desde o seu início na década de 1940, uma preocupação política que o mesmo nunca abandona. Segundo o próprio, numa conversa com Helena Vaz da Silva, e citada por Irene Flunser Pimentel [Júlio Pomar. O Pintor no Tempo, Documenta, Lisboa, 2018], foi o “espectáculo de uma cidade que discute, que está viva, o que nunca tinha visto na vida e era inesquecível” o que o mais marcou. E é esta ideia de vida que as suas pinturas tão bem mostram.
“O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68” não é uma exposição histórica, mas interroga o modo como a arte se deixa contaminar pela política e como essa contaminação é um território tão intenso para os artistas. Ao lado de Pomar, e de pinturas que realizou em anos tão diferentes como 1946 e 1968, são mostradas obras de Ana Vidigal, Carla Filipe, João Louro, Jorge Queiroz, Ramiro Guerreiro e Tomás da Cunha Ferreira, que não só dialogam com o universo do pintor, mas, sobretudo, se deixam tomar por esse espectáculo de uma cidade que se torna viva quando os cidadãos saem à rua e se transformam num corpo único, assumindo uma voz comum. Em conversa informal, com Sara Antónia Matos e Pedro Faro, Júlio Pomar referiu, a propósito dos 50 anos do Maio de 68 que “os escudos da política eram grandes, redondos e opacos, e os bastões da polícia eram linhas rectas e compridas”. O que pode a arte perante isto? ” Atelier-Museu Júlio Pomar
Catálogo com textos de Sara Antónia Matos / Nuno Crespo / Daniel Ribas / Mariana Pinto dos Santos / Hugo Dinis
Edição: Documenta / Atelier-Museu Júlio Pomar, Lisboa: 2018
Este catálogo é publicado por ocasião da exposição «O que pode a arte? 50 anos do Maio de 68» (15.05 – 29.09.2018), com curadoria de Nuno Crespo e Hugo Dinis. A exposição, que recorda e comemora o 50.º aniversário do movimento estudantil francês, junta obras de Júlio Pomar, Ana Vidigal, Carla Filipe, João Louro, Jorge Queiroz, Ramiro Guerreiro e Tomás Cunha Ferreira. De diferentes modos, estes artistas continuam a encontrar na arte uma forma de afirmar os seus posicionamentos críticos sobre o mundo onde vivem, sobre as suas crises e formas de superação, mostrando o modo como a produção artística é contagiada pelas transformações políticas e sociais. (AMJP)
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Maio 68 e os Anos Pop de Júlio Pomar
A coincidência entre a mostra do Atelier-Museu Júlio Pomar (“O que pode a arte?… ”), programada a pretexto de Maio 1968, e a exposição “Pós-Pop. Fora do lugar comum – Desvios da «Pop» em Portugal e Inglaterra, 1965-1975”, de 20 abril a 10 setembro 2018 na Fundação Gulbenkian (em que não esteve representado), é uma oportunidade favorável para identificar os Anos Pop de Júlio Pomar, tema ausente dos ensaios sobre a sua obra. Um assunto que foi invisível no seu tempo próprio, e depois, até agora, já que as várias séries principais – em especial os Rugby, Mai 68 (CRS SS) e os Banhos Turcos segundo Ingres, que tiveram continuidade em variações sobre outros pintores históricos e em retratos, até 1976 – nunca se mostraram em sequência, em galeria ou em catálogo próprio, em Paris ou em Lisboa, e quase não foram expostas depois (na retrospectiva de 1978, a colecção de Jorge de Brito não era acessível). Um tema que ficou rasurado. Mas um tema necessário para entender a sequência das “fases” do pintor, e em especial a viragem decisiva do final dos anos 60.
Pode-se começar por considerar as telas que foram dedicadas aos Beatles, datadas de 1965-66 (reproduzidas no Catálogo Raisonné) e bem escolhidas no AMJP como representativas do “ar do tempo”. Existem duas telas intituladas The Beatles (I e II) que foram pintadas em Lisboa e expostas numa individual realizada em 1966 na

SNBA, estando uma delas incluída na actual exposição e a outra nunca localizada; e existiu pelo menos mais uma terceira nunca exposta até agora, de produção posterior e mais rápida, mais “experimental” ou mais “solta” e talvez por isso indicativa da procura de novas orientações. Note-se, entretanto, que subsistiram registos fotográficos de mais quatro telas sobre os Beatles que foram destruídas pelo artista, certamente nos finais de 1966, ou já 1967, num grande momento de crise e reconsideração da sua obra (vejam-se as fotos publicadas no volume III dos catálogos “Void*”, ed. Atelier-Museu, Documenta, 2017)
A exposição de 1966 na SNBA foi a primeira mostra realizada em Lisboa depois de o artista se ter instalado em Paris em 1963, e aí surgiram em maior número as telas sobre dois dos novos temas parisienses, os “Metro” e as corridas de cavalos (“Courses”), ao lado de uma obra única sobre o Catch (luta livre francesa), de duas variações sobre uma pintura de Uccello e dos referidos dois quadros intitulados The Beatles I e II. Importará saber que a 1ª digressão mundial do grupo se iniciara em 1964 e contou com uma série de 20 noites no Olympia de Paris, a encerrar um programa de “music hall” com a participação de outros músicos.
Esses dois quadros expostos na SNBA foram reproduzidos em 1966 nas páginas do Século Ilustrado e da Flama, embora sem especial destaque, e a insólita aparição do grupo Pop não terá sido avaliada pela crítica nem comentada depois. Poderiam ter sido objecto de estranheza, face à obra e aos interesses conhecidos do artista, mas passaram em silêncio. De facto, ao contrário de todos os outros espectáculos representados por JP (cenas de trabalho, tauromaquias, corridas de cavalos, o catch), a série Beatles será a 1ª que o pintor aborda sem ter sido um espectador directo – mesmo que desde o início, desde o ‘Gadanheiro’, de 1945, usasse a fotografia como auxiliar da memória. A partir dos Beatles ele trabalha sobre imagens fotográficas encontradas na imprensa de cenas e situações (espectáculos visuais) a que não assistiu directamente. Imagens mediáticas, o que é um segundo ponto de contacto com a Pop, mesmo que não pratique a transferência directa ou a colagem, nem a apropriação de imagens ready-made.

Uma referência a Rauschenberg, colocado a par de Velazquez, que surgiu numa entrevista de Adriano de Carvalho publicada em 1966 no Século Ilustrado, poderia ter sido também motivo de atenção crítica. Rauschenberg fora exposto por duas vezes em 1964 pela Galeria Ileana Sonnabend em Paris e premiado nesse ano na bienal de Veneza – a repercussão da sua obra era então imensa, mas recebida com hostilidade em França, desalojada do seu lugar central.
Mas já numa carta pessoal de Outubro de 1965, enviada de Paris, Júlio Pomar referia bem explicitamente o seu interesse pela Pop anglo-saxónica: Sobre uma visita à “Bienal dos Jovens“ (será certamente o Salon de la Jeune Peinture) destaca o interesse das “litografias de Allen Jones, bem como de uma maneira geral toda a secção inglesa”, e também da representação alemã, apenas. Refere igualmente a exposição ‘Figuração Narrativa’ (Galerie Greuze) “com algumas coisas boas: um Rauschenberg, o primeiro Oldenburg a interessar-me, Kitaj, Peter Phillips e um bom Arnal” (só François Arnal é francês, vindo da abstracção lírica e informal). Na mesma carta fala do interesse pelos filmes dos Beatles: com a estreia de “Help!” descobriu “A Hard Day’s Night”, de 1964, ambos de Richard Lester: “Vi o novo filme dos Beatles e ao mesmo tempo o primeiro. São do bom cinema, e um reatar da grande linha do cómico”. À data desta carta já deixara em Lisboa os dois quadros dos Beatles para a exposição de 1966 na SNBA.
Em 1967 (2 Março), num artigo-entrevista de Mário Dionísio, publicado no Diário de Lisboa, Pomar refere a sua “descoberta da América” e dedica ao artista norte-americano, habitualmente classificado como “proto-pop”, um comentário alargado que traduz o grande interesse pela ruptura que a sua obra veio trazer. A este respeito importa ter em atenção que a apresentação da Pop norte-americana em Paris é particularmente tardia, para além de ter sido em grande parte rejeitada, num contexto focado na defesa dos “Novos Realistas” de Pierre Restany e depois das “Novas Figurações” de Gérald Gassiot-Talabot. A descoberta da Pop americana ocorre no Salon de Mai de 1964 e em “Art USA Now” no Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris. (Ver ‘Paris-New York’, ed. Centre Pompidou 1977).
Transcrevo o parágrafo desse diálogo: “ ‘Em pintura, a descoberta da América foi decisiva’ [JP.] (…) A ‘pop’, de que sorri, que falhou em Paris, não o inquieta muito. E gosta de Rauschenberg? [M.D]. ‘Sim. É a integração da imagem num novo conceito plástico. Quando a arte abstracta se preocupa com não distinguir o céu da terra, ele, partindo dos elementos mais corriqueiros, imagens gastas, batidas, consegue conferir um valor plástico àquilo que os nossos olhos anteriormente não viam. Uma roda, um movimento, funcionam da mesma maneira que um azul cobalto. Uma refusão total do mecanismo da visão’ [JP.] “
Vêm a seguir (primavera-verão de 1967, na praia da Manta Rota, Algarve) as assemblages de materiais encontrados, associações imprevistas e livres de fragmentos de objectos gastos ou usados pelo tempo, peças sem leitura figurativa, sem precedentes na sua obra, se não consideramos como tal as esculturas-montagens de ferros soldados do início da década. A ligação das assemblages a Rauschenberg é possível, sem ser imediata ou directa.

Estava a chegar a série sobre o Rugby, trabalhada também a partir de fotografias, tal como serão os Maios de 1968. Depois do impasse (im)produtivo que justificou a destruição de dezenas de telas (ver “Void*” volume III, 2017), JP entrava num novo ciclo de criação, em que a admiração por Rauschenberg e o contacto com a pintura Pop anglo-saxónica terão exercido um papel decisivo, mesmo se não mimeticamente explícito: a dispersão-associação de fragmentos de figuras nsobre a tela, num fundo liso e não perspéctico; a substituição da pincelada livre pelo recorte nítido das formas. Depois da “desfiguração” anterior, em diálogo pessoal com os abstraccionismos gestuais (Saura, Mathieu, etc), a figura ganhava outras condições de possibilidade numa diferente abordagem e construção, como representação de (ou a partir de) uma representação (fotográfica). Depois de a figura se ter dissolvido ou desvanecido sem remédio nos quadros destruídos, que eram “abstracções” falhadas.
Rugby’s e Maios sucedem-se e coincidem no tempo, e surge logo a nova série dos Banhos Turcos segundo Ingres – onde a relação com Matisse se irá tornar eficaz. Numa carta de Maio ou Junho de 1970, diz: “A retrospectiva do Matisse veio-me a calhar e tem-me dado material de trabalho. Veio na altura certa”. É conhecido o interesse dos pintores da Pop por Matisse, nomeadamente de Warhol (logo numa declaração de 1956) e de Wesselmann e Lichtenstein, que o citam com frequência.


Nos últimos Maios (agora expostos) aparecem formas recortadas que já são corpos dos Banhos Turcos. Seguem-se os retratos de Almada e Viana, ou de mulheres (nus íntimos), e as variações sobre outros clássicos, Courbet, Van Eyck, Chardin. Essa é ainda uma relação com a Pop, e com o cartaz. Em todo este período a referência ou relação nunca se estabelece com as “Mythologies Quotidiennes” e a “Figuration Narrative” francesas.
Aconteceu por variadas razões, especialmente por o artista preferir pintar a expor, que as séries Rugby e Maio não tiveram a oportunidade de exposições individuais, nem em Paris nem em Lisboa, sendo imediatamente absorvidas pelo mercado português, e quase totalmente por Jorge de Brito – mas na retrospectiva de 1978 na Gulbenkian as obras da colecção Brito estavam inacessíveis e o enfoque principal estava já na série das colagens eróticas.

Em 1971, um Banho Turco (hoje na Colecção Manuel de Brito) foi exposto no Louvre numa mostra internacional dedicada a Ingres e as suas variações, mas a individual seguinte, 1973 na Galeria 111, já não mostrou as séries Rugby e Maio, centrando-se nos novos retratos. Não era então fácil acompanhar a sequência da obra de Júlio Pomar. Cada mutação desfocava a série anterior.
A Galerie Lacloche (onde expôs em 1964 e 65, Tauromaquias e Corridas) passara a dedicar-se aos múltiplos de objectos e mobiliário de artistas mais ou menos Pop; a galeria seguinte, a Galerie Bellechasse, começou a expor JP apenas em 1979. Por isso os Maios de 1968 e os Rugbys coincidentes tiveram agora a 1ª oportunidade de serem vistos em extensão, embora a oportunidade se tenha bastante diluído nas condições da exposição colectiva, do seu título e do cartaz.

Maio de 1968, e a tensão política dos anos anteriores, tiveram uma expressão forte na arte desse tempo: foram anos de abandono da pintura em favor do cartaz, do múltiplo, da instalação e da acção, e em geral da contestação das disciplinas e estratégias expositivas habituais, condenadas como burguesas, consumistas, conservadoras. A relação de Júlio Pomar com Maio de 1968 é política, mas é também especialmente pessoal e estilística, vivida sob a aproximação à Pop britânica e norte-americana, que era menosprezada em Paris. Sendo obras políticas, pinturas sobre a história desse tempo, os Maios acompanham os Rugby’s e os Banhos Turcos, e devem ser vistos nesse contexto que é em primeiro lugar formal ao mesmo tempo que é político. A mudança não é motivada por Maio de 68 e não determina o retorno a um tempo de activismo artístico de sentido político…
Alexandre Pomar