
Void* vol. III, Júlio Pomar – Ed. Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta, 112 pags. Apresentação de Sara Antónia Matos e Alexandre Pomar
Na segunda metade dos anos 60 (…1967, 1968) a reorientação da obra de Júlio Pomar foi acompanhada pela destruição de um grande número de pinturas nunca expostas, e ficou marcada pela afirmação de novos temas e novos procedimentos picturais – os ‘Rugbys’ e ‘Maios’. O artista conservou registos fotográficos dessas obras destruídas em alguns rolos a preto e branco, contactos por vezes anotados e negativos, o que contrasta com a mais habitual falta de documentação do seu trabalho.
Ocupara-se até 1965 com duas séries parisienses, os “metros” e as corridas de cavalos (‘Courses’), estas interrompidas quando o sucesso tinha lista de encomendas. Nesse ano apareceram três inesperados “retratos” dos Beatles (ao tempo de ‘Help!’ e da temporada no Olympia) e começou a série dos ‘Catch’, o wrestling francês. Desta coinhecem-se três telas (duas de 1965 e outra datada de 1968 já ligada a outros ciclos, parente dos ‘Rugbys’), únicas sobreviventes da destruição, mais algumas pequenas pinturas sobre papel e uma longa série de desenhos que em 1978 foram passadas a litografias e em 1984 publicadas em livro, o que comprova a interesse do artista pelo tema.
Esses documentos fotográficos foram explorados por ocasião da exposição ‘Void*, procurando-se identificar núcleos temáticos e formais e também a própria orientação física das telas. As provas fotográficas vieram revelar outros ‘Beatles’ e ‘Metros’, variações de duas obras singulares e únicas de 1966, ‘Foire du Trône’* e ‘Parade’*, a novas aproximações a Uccello* e outras desconhecidas a Velazquez, vistos no Louvre e no Prado, e em especial 21 ‘Catch’ e outras experiências interrompidas (um poço da morte?), no limiar da desfiguração ou da não-figuração. Notar-se-á por um lado a experiência (falhada) de uma gestualidade exacerbada, talvez sem qualquer referência figurativa, e por outro lado nítidos contactos com dois contemporâneos particularmente apreciados: Rauschenberg, presente numa variação de Los Bebados d’après Velazquez , e Bacon, bem reconhecível nos ‘Catch’.
Em 1967, no verão algarvio, Pomar executa os projectos para tapeçarias com que concorreu a um concurso para a sede da Gulbenkian (foi João Abel Manta o vencedor) – a aparente não-figuração pode ser lida como sequência quase abstracta das corridas de cavalos (numa aparição frontal sem espaço perspectico, antecipando as tapeçarias que em 1988 faria para a sede da CGD). Mas é também na praia da Manta Rota que produz as assemblages de materiais encontrados que constituem uma novidade no seu trabalho, se não as ligarmos às esculturas de ferros soldados do início da década.
Sobre a série ‘Catch’ veja-se abaixo a notícia sobre o álbum-caixa produzido em 2014, onde um texto original de Júlio Pomar recordou os seus primeiros anos parisienses. Outra informação, sobre os ‘Beatles’ e a entrada no ‘período Pop’, em 1967-68, encontra-se na nota sobre os ‘Maios’, que foram revisitados em 2018. * Obras reproduzidas abaixo

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Obras destruídas de Júlio Pomar / Apresentação
Terceira secção do catálogo Void*: Júlio Pomar & Julião Sarmento, publicado por ocasião da exposição que juntou os dois artistas no Atelier-Museu Júlio Pomar, entre 29 de Outubro de 2016 e 12 de Março de 2017, este volume apresenta um extenso conjunto de fotografias a preto e branco que mostram obras datadas da segunda metade da década de 1960, quase todas captadas em 1968 (antes ou depois de Maio), no atelier do pintor em Paris.

As imagens que aqui se publicam, com a permissão do artista, disponibilizadas pela Fundação Júlio Pomar especialmente para esta edição, revelam obras em execução ou deixadas inacabadas e outras talvez dadas por concluídas mas todas igualmente destruídas. As imagens permitem dar a conhecer, por um lado, o cenário privado da residência e atelier do pintor – instalado em 1963 em Paris, na Rue Molitor, nº39, XVIe Arrondissement – e, por outro, documentam uma produção datável de 1964 a 1968 com a qual Júlio Pomar deixou então de se identificar e que por isso destruiu, num momento de mudança de processos de trabalho e também de temáticas.
O pendor abstracto das obras que são aqui pela primeira vez apresentadas parece acompanhar uma saturação face às séries e aos meios formais que o pintor vinha a desenvolver anteriormente, num «realismo» de cunho iminentemente gestual, com movimentos amplos e pinceladas livres, sempre com origem na observação directa das cenas e dos espaços. Trata-se de um período de experiências e inovações temáticas, que incluiu o bem-sucedido ciclo das corridas de cavalos, “Les Courses”, mas também um tempo de exaustão e de incerteza, a que não terá sido indiferente a instalação no meio francês.
Os primeiros temas abordados em Paris (1), em 1963, ainda antes de encontrar casa e atelier, e por isso em têmperas sobre papel, foram os macacos e chimpanzés vistos na Ménagerie do Jardin des Plantes (2), mais as “Étreintes” (abraços) e os “Metros” iniciais – vejam-se os nºs 271 a 282 do Catálogo Raisonné vol. I,[adiante referido como CR I].

Seguiram-se, a partir de 1964, as “Corridas de cavalos”, primeiro observadas no campo de Auteuil, perto de casa, depois em Longchamp e Vincennes, com as diferentes modalidades de corrida: obstáculos, galope e trote atrelado. Expostas “Les Courses”, logo em 1965, na mesma Galerie Lacloche, 8 Place Vendome, o pintor encerrou depressa esse ciclo apesar de um êxito de mercado que dispersou parte da produção, nomeadamente para os Estados Unidos, permanecendo várias obras por localizar até hoje. Entretanto, em resultado das visitas ao Louvre, apareceram as “Batailles (d’après Uccello)” – a “Batalha de San Romano” (3) -, e descobrem-se agora, além de quatro ensaios destruídos sobre o mesmo tema, também duas «revisitações» de obras de Velazquez, antes vistas no Prado, nomeadamente um retrato equestre e “Los Borrachos”. Essas “Batalhas” iriam continuar até 1968: «em Maio estava eu a refazer interpretações das batalhas de Paolo Ucello – que, reduzidas aos seus elementos mais simples, são lanças, paus, capacetes – e de repente dou com isso ao vivo na rua», tinha dito o pintor em 1980 (4).
Tinham surgido entretanto os “Catch” ou “Lutas”, que resultam das visitas a salões da luta livre francesa (Salle Wagram) e que se prolongaram na mais longa série de obras destruídas. Sobreviveram apenas duas telas conhecidas, datadas de 1965 mas já distanciadas em tempo e «linguagem», que se podem ver reproduzidas no Catálogo Raisonné I (nºs 330 e 331). Mas também se conhece uma larga série de desenhos da mesma data, os quais vieram a ser divulgados por iniciativa do editor e amigo parisiense Joaquim Vital na revista Discordance (Paris, 1978, número único) e depois no livro Catch: Thèmes et Variations, com um ensaio do pintor (ed. Différence, 1984). Entretanto, 34 desenhos tinham sido tirados em litografia com destino a um álbum que só foi efectivamente concretizado em 2014, já pela Fundação Júlio Pomar (5).

Outras obras agora identificadas e também destruídas multiplicam as direcções de pesquisa: surgem quatro ensaios da série “Beatles” (vejam-se as três telas de 1965, CR I nº 327-329) e mais quatro variantes da tela “Parade”, nº 343 do mesmo catálogo. Esta é uma obra isolada, datada de 1966, que alude, no limiar do reconhecimento, a um desfile imaginário de músicos e mascarados com caveiras. Na documentação fotográfica agora revelada inclui-se também um grande crocodilo em formato 50X150 cm (cf. CR I nº 346). É mais uma peça de um bestiário que por essa época se renova com os primeiros porcos (cf. CR I nºs 347-349).

Mas no caso de outras telas adiante reproduzidas já não existe ou não é possível reconhecer qualquer dado referencial. Documentam uma pesquisa claramente assumida pelos caminhos da abstracção gestual, de notório automatismo, a que o pintor não deu continuidade. Notar-se-á, no entanto, que essas cinco telas destruídas são de algum modo próximas do quadro “Foire du Trone” (CR I nº 353), nome de uma feira popular parisiense, e de “Vista de Lisboa” (CR I nº 351) – duas obras únicas na produção do pintor, habitualmente estruturada em séries.
A seguir a um período de quatro meses de férias e trabalho no Algarve, no verão de 1967, em Manta Rota, em que começou a produzir assemblages de objectos e materiais encontrados na praia (6), e seguramente já sob o impacto dos acontecimentos de Maio de 1968, o pintor terá considerado o seu trabalho num impasse. Terá sentido a necessidade de voltar a «estabilizar» a sua pintura, o que aconteceria com os fundos lisos e as formas recortadas que surgem a partir das séries “Rugby” e “Mai 68 (CRS-SS)”, obras que têm origem em fotografias da imprensa – uma mudança decisiva na sua metodologia de trabalho – com sequência nos “Banhos turcos, segundo Ingres” e nos retratos dos anos seguintes, em que o gesto e as pinceladas livres desapareceram.

As imagens de época que se apresentam neste volume são testemunhos de um conjunto de experiências que o pintor desenvolveu, quase em passagem para o campo da “abstracção” (conceito explorado na exposição Void*: Júlio Pomar & Julião Sarmento), no qual o artista não se reviu e que abandonou, destruindo deliberadamente as provas materiais da incursão nesse universo plástico. Assim, estas imagens são também um registo dos processos e enredos, nem sempre evidentes, que os artistas atravessam ao longo das suas obras, muitas vezes vagueando e falhando nos caminhos que buscam, mas que certamente dão origem a produções mais firmes, fulgurantes, a que nunca chegariam sem passar por estes meandros.
Alexandre Pomar [Fundação Júlio Pomar] e Sara Antónia Matos [Directora do Atelier-Museu Júlio Pomar]

1 As «Tauromaquias» portuguesas foram expostas em 1964 na Galerie Lacloche: «Tauromachies».
2 Isto na sequência de vários cadernos de desenhos de observação aí (Ménagerie do Jardin des Plantes) preenchidos desde 1960 e também no Museu do Homem.
3 Três telas de 1964, nºs 288-290, no Catálogo Raisonné I, Éditions la Difference, Paris, 2004.
4 A Helena Vaz da Silva, «Com Júlio Pomar», ed. António Ramos, Lisboa, pág. 26. Só agora a informação se confirma, em telas que associam ambos os temas.
5 Catch – Júlio Pomar, Paris 1965 (Ed. Différence, 1978 / Fundação Júlio Pomar, 2014).
6 Foram mostradas pela primeira vez na retrospectiva de 1978. A exposição que juntará Júlio Pomar e Pedro Cabrito Reis, em Junho-Setembro de 2017, procurará investir sobre esta fase e tipo de produção artística.



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VOID* – Volume III: https://issuu.com/sistemasolar/docs/void_3_pomar
Gostei de ter conhecimento desta faceta o artista, que desconhecia completamente